domingo, 28 de novembro de 2010

Um passeio socrático pelas páginas do consumo.


"Ao viajar pelo Oriente mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China . Eram homens serenos, comedidos, recolhidos e em paz nos seus mantos cor de açafrão.

Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo : a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade?'


Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: 'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'. Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...'. 'Que tanta coisa?', perguntei.. 'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação!'


Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados. Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: ' Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!' Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?


Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizi nho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. E somos também eticamente virtuais...


A palavra hoje é 'entretenimento'. Domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, calçar este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!' O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.


O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental, três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.


Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shoppings centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas....


Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do Mc Donald...


Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: 'Estou apenas fazendo um passeio socrático. Diante de seus olhares espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia:

"Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz!" "


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*Quando recebi esse texto, não havia a autoria. Apesar disso, que ele ressoe no que propõe de reflexoões... Isso importa. Achei interessante compartilhar.

**Ainda em tempo, algumas atualizações. Disseram-me que esse texto era do Frei Betto, alguém confirma? Muito pertinente.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Sobre pássaros musicais.

"A lição que fica pra mim é que é possível ver poesia em qualquer lugar, depende só do jeito que a gente olha".




quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Fotografia sem câmera II

D'aquilo que não se pode t(s)er   16.11.10

Um menino morador de rua - roupa suja, rasgada, pés descalços - segura as mãos nas grades de uma janela, projetando o corpo para melhor observar o que acontece no interior. Neste perto dos tão longe, várias crianças dançam e tocam pequenos instrumentos percursivos, sob os comandos de um professor atento. A escolhinha está cheia de alegrias.



domingo, 14 de novembro de 2010

Da série "fotografia sem câmera"

Cenas do Brique da Redenção   14.11.10

Um bebê indígena dentro de um carrinho de supermercado (cercadinho nômade) é convidado a se refrescar por um homem (que pode ser seu pai), enquanto este lhe oferece como mamadeira uma garrafa de dois litros de Coca Cola - contendo Coca Cola. A sede manda lembranças.



Não preciso ir muito além dessa estrada...

Algumas palavras.

...

"- Me chamo Miserinha. É nome que me foi dado, mas não de nascença. Como esse lenço que recebi. 
De novo, a sua atenção pousa no Tio. Seu olhar parece mais um modo de escutar. Que seria que ela retirava do meu parente? Talvez sua definhada postura. Sabe-se: a dor pede pudor. Na nossa terra, o sofrimento é uma nudez - não se mostra aos públicos. Abstinêncio se comporta em sua melancolia. A velha coloca a mão sobre a testa, cortinando os olhos, atenta aos tintins dos gestos de Abstinêncio.
- Esse homem vai carregado de sofrimento.
- Como sabe?
- Não vê que só o pé esquerdo é que pisa com vontade? Aquilo é peso no coração.
Explica-me que sabe ler a vida de um homem pelo modo como ele pisa no chão. Tudo está escrito em seus passos, os caminhos por onde ele andou.
- A terra tem suas páginas: os caminhos. Está me entendendo?
- Mais ou menos.
- Você lê o livro, eu leio o chão".

...


Um trecho de "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra", daquele que faz as palavras dançarem, de tanta cor e movimento que as faz gerar - Mia Couto. Ele, que de Moçambique nos relembra a necessidade de renascer.

sábado, 6 de novembro de 2010

Sonhei que sonhava uma canção


Y soñando que un sueño era mi traje
comencé la canción, la poesía,
y aquel sueño aprendió todo el mundo de mí
e iba yo sin saber que él sabía, que él sabía.
Y así fui, por la tierra, por los mares,
por los cielos, las noches y los días,
los amores, los templos y los bares,
así fui con mi sueño que sabía.
Y aquel sueño que yo soñaba puesto
comenzó a soñar que él me soñaba
y un buen día aprendí todo el mundo de él.
y ahora somos pareja en la sala
e inventamos un vals que bailamos para soñar.
Silvio Rodriguez

Movimento ao meu redor.  Eram passantes, eram passados, eram presentes, eram amores. Havia ação neste exterior, muitos rostos conhecidos, outros nem tanto, mas todos irremediavelmente – ali.
A despeito dos meus olhos que a tudo chegavam, ao longe, o olhar não era nunca retribuído. Eu não era vista, e a atuação dava a entender que, realmente, eu não estava ali. Mas sim, eu me sentia, eu sentia, eu estava.
Estava fechada, porém, em um lugar que não havia muros – e nenhum material atuava em separar interior-exterior. Um lugar por onde todas as imagens exteriores entravam.
Estava exposta, porém invisível. Também queria interagir, queria atuar: também queria viver, como todos. Mas não podia. Eu não estava desperta, e não havia ninguém que pudesse me tirar daquele estado, a não ser eu mesma.
Um encontro.
Um encontro que demorava a acontecer.
E aquele eu quietinho, meio recolhido, ficava numa mistura estranha de ansiedade e espera, querendo poder sentir a força do próprio passo, os ritmos do próprio andar, os traçados dos caminhos produzidos pelo corpo, com calma e persistência, tal como o vôo de uma gaivota que atravessa o ar e a sua dureza, sutilmente. Mas o tempo. Ah… 
O tempo estava suspenso. Era aquele que não passa, ou se demora, ou nunca chega.
Até hoje não consegui saber ao certo se com esse corte fiquei esperando até ser acordada, finalmente, ou se simplesmente me rebelei. Se o encontro se deu? Acredito que em vários níveis, e pode não ter sido frente a frente, como um espelho, afinal, não só o que se reflete idêntico devolve o olhar.
Prefiro poetizar que sim, que tenha resolvido deixar de esperar, afinal, gosto mais de pensar a paciência de mãos dadas com tudo aquilo que é vivo. E também tem me vindo como carícia a idéia de que a redoma, agora rompida, tenha cedido lugar a pernas, passos, danças, caminhos e vôos mais libertos...