segunda-feira, 12 de julho de 2010

Pelos percursos ou: ¡Adelante!, las cosas insignificantes


Para la belleza del caballito del mar.

“De todas as estações do ano,
o inverno é a mais velha.
Põe tempo nas lembranças.
Remete-nos a um passado distante”.
Bachelard


Estou ainda extremamente tocada com tamanha delicadeza, e já faz dias: “Cosas insignificantes”, primeiro longa de uma Mexicana chamada Andrea Martínez, traz à cena a memória, traz a relação de afeto que vamos estabelecendo com os objetos da nossa memória, essas coisas capazes de nos  remeter a outras temporalidades, por conterem uma certa dilatação do tempo no qual nos rememoramos, junto com elas, dos nossos lugares e momentos mais recônditos. Coisas-vestígios que nos fazem lembrar dos nossos passos no mundo da experiência. Coisas que nos remetem sempre à vida.
Neste filme, temos a história de uma menina que formava um imenso relicário de objetos perdidos (ou encontrados), rastros de outros que de algum modo se desfizeram destes objetos, mas que nem por isso deixam de seguir sendo evocados por aqueles pedaços-resquícios de memória... ela guarda tudo numa caixa vermelha, guardada à chave, embaixo da cama. Abre-a como quem abre um tesouro.
Mesmo sendo aquela que reúne, aquela que se doa ao ato de recolher restos alheios, e torná-los um poucos seus, esta menina é a que menos consegue lhes fazer voar a asa da imaginação, a que menos sonha com os seus possíveis e múltiplos sentidos, deste instante que se abre como uma porta do universal, dessa coisa tão desaprendida… o humano.
Não é à toa, me parece, que essa personagem a recolher belezas seja justamente alguém tão marcado pela amargura... Uma menina que desde cedo se deparou com o papel de ser mãe de sua irmã mais nova e também de sua avó, uma linda indígena sonhadora, que fica restrita ao ato de dormir e acordar, pois pouco ou nada desejam saber sobre sua história imaginativa.
Esmeralda - esta menina dos rastros - vê-se obrigada a trabalhar para sustentar a família, sendo que o que lhe é ofertado como cotidiano é um ambiente de total impessoalidade, uma lanchonete que na maioria das vezes é vazia e hostil, onde divide as diversas funções que acumula com um menino oriental (chinês, japonês, coreano, vietnamita, tailandês, não sei, ainda não aprendi a distingui-los quando não estão na sua geografia de origem, e pior ainda como neste caso, de alguém que perdeu qualquer traço da cultura dos seus antepassados), menino este que prefere vivenciar o seu tempo colado aos seus fones de ouvido a falar com ela, a vivenciar o momento presente compartilhando-o com ela… Coisas dessas quinquilharias do mundo moderno das quais muitos de nós também fazemos uso por vezes, mas que nem por isso posso deixar de perceber o quanto nos afastam como seres humanos. Passam longe, portanto, da beleza das simples coisas que Esmeralda segue recolhendo pelos lugares por onde percorre junto à sua bicicleta, que é meio de transporte mas também seu meio de apreensão do mundo, a conecta…  o ritmo do pneu não condiciona totalmente a passagem, mas dá o tom das paisagens invisíveis no meio do caminho, quando ela decide parar a bicicleta ao encontrar um pedaço de papel colorido: cores estas que se abrem como mundos, mundos que ela talvez sonhe em fazer parte, mas que, pela própria dureza de sua vida, não possa ter. É, no fundo, uma menina bastante solitária, que carrega consigo uma caixa plena de muitas outras solidões.
Mesmo diante de uma vida endurecida, posto que suas preocupações se direcionam para o mais básico, necessário e imediato da vida, ou seja, a sua sobrevivência e a dos seus, Esmeralda não abandona sua avó que ela própria julgava como louca, e, por isso, “incapaz”, e nem sua hermanita que ainda não pode ajudar no sustento de casa. Não porque ao fazer isso vá se sentir meramente “culpada”, mas porque aos poucos vai redescobrindo a tônica do objeto-afeto, e assim essa tristeza sem nome que lhe toma o peito vai se mostrando e ao mesmo tempo se transfigurando como puro amar, e ir para o Canadá “ganhar muito dinheiro” (o sonho americano migrou para mais ao Norte) já não teria tanto sentido para ela se não pudesse estar ao lado das pessoas que mais ama, e justamente por isso, as que menos compreende…
O bonito é que ambas – la niña e la vieja – portam longas tranças, como as tramas da vida que vão sendo tecidas nas suas simplicidades, e também o fato de ambas terem os olhos fixos na chama do sonhar, essa coisa tão de vida que muitos dignamente deram o nome de sabedoria. A sabedoria da inocência, de um lado, e a sabedoria que a densidade do tempo dá, de outro.
À moda de um cartógrafo, lembrando Deleuze e Guattari, Esmeralda vai reconhecendo as tramas de muitas vidas na reunião que faz destes tantos nesta pequena caixa vermelha, numa mistura de instinto (age e não sabe por quê) e intuição (age, não sabe por quê, mas sente que um dia isso vai fazer sentido).  Mesmo que à sua própria vida tenha esquecido – ou venha sendo obrigada a esquecer – a beleza das pequenas coisas, ela reúne com tal zelo os pedaços memoriais destes muitos invisíveis, objetos cujos donos talvez ela jamais os venha a conhecer, mas que estão ligados a ela irremediavelmente, e de uma forma muito bonita.
Os personagens-outros vão sendo apresentados a partir das coisas que de algum modo, foram deixadas, e que foram recolhidas pela menina.
O elemento conector destas vidas  (a despeito da tragicidade ou crueldade da existência, presente como conector das vidas nos filmes de Iñaritu – que certamente são influências para a diretora estreiante - , e também das muitas tragicidades que Cosas insignificantes nos apresenta na vida dos seus personagens), não é o instante das escolhas, que Iñaritu nos mostra através da dor do que é irreversível, trágico.  Andrea Martínez nos fala que com e apesar da dor, o percurso pode ser belo. Aqui o que costura, o que une, então, são as próprias coisas, os pequenos “regalos” que o mundo vai colocando no caminho de Esmeralda, a mais levada pela beleza do ínfimo, mas, como que para lembrar as palavras de Manoel de Barros, ainda não fez juz às suas grandezas, às grandezas dos seus ínfimos.
Quando ela fica sabendo da importância que um papelzinho achado teve na vida de uma pessoa, porém, ela não apenas devolve o papel ao seu dono, mas entrega a caixa inteira… São preciosidades que jamais perderão a força para ela, mas agora mais do que nunca é urgente que ela crie uma caixa com as suas experiências, tal qual uma ética e estética da existência (emprestada de Foucault): ética porque é feita no cotidiano das escolhas, e estética porque relaciona as escolhas da vida não apenas às suas finalidades, mas à formação da própria beleza do percurso.
Nesta urgência, Esmeralda pega sua biblicleta e vai em busca das pessoas que condensam seu afeto, e a caixa… A caixa ainda está plena de objetos coloridos em comunhão, mas agora estes também precisam vagar por outras paragens, intensificar a vida de outras pessoas. Ela não a abandona, apenas a deixa passear… Permite que ela vá sendo habitada também por novos donos, e que, com isso, outros corações também sejam habitados por ela…
Mas aos poucos vou percebendo que o elemento conector destas muitas vidas não é somente “as coisas”. Não é a ilha, como terra isolada, senão a imensidão das águas que a circunda: são as coisas plenas de memória, e por isso plenas de afeto, que conectam. São estas as coisas capazes de nos remomorar quem somos, de onde viemos. Essas coisas capazes de nos fazer retornar. Que nos propõem o mergulho nas águas do tempo.

Se a personagem abandona a caixa e se põe a viver a beleza das pequenezas de sua vida, e a caixa outrora cheia de pequenas solidões agora vai espraiando as sementes de novos territórios. Assim imagino que cada coisica na vida (como as da caixa), possa ir sendo povoada, tornando-se aquilo o que é: rara, valiosa, brilhante, portando muita densidade e intensidade, esculpidas pelos leves toques da mão da delicadeza - tal como una esmeralda.


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Para quem deseja ver "Cosas insignificantes" também em imagens-movimento:


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